O Ser que busca a humana...

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Eu não sou eu, nem sou você. Sou qualquer coisa de intermédio, pilar da ponte de tédio. Que vai de mim para o outro. Mário de Sá - Carneiro

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Lentes escuras




Após passear pelas redondezas do bairro, observou que um de seus vizinhos estava se desfazendo de alguns pertences antigos. Sempre atento a possíveis descartes, pois muitos de seus brinquedos eram montados a partir deles, aproximou-se do vizinho e o cumprimentou no intuito de apresentar disponibilidade para alguma doação. No meio de algumas breves considerações e ajuda, veio o prêmio da loteria, o seu maior presente. Foi dominado por uma felicidade clandestina que poucos conhecem.
O dia estava nublado, cinzento, quase escuro. Mas, para ele aquele clima não iria abalar sua felicidade. O mundo externo não lhe oferecia às luzes necessárias, mas internamente havia mais luz própria que o próprio sol. Estava se sentindo bem com aquelas armações quadradas, antigas, com manchas de mofo, empenadas e totalmente fora de moda. Mas, seu. Só seu. Um presente de valor inestimável. Um prêmio lotérico. Há tempos não se sentia tão bonito, charmoso. Digno com aquelas lentes escuras, pouco arranhadas, mas brilhantes. Projetou-se de várias formas. Fez-se de executivo, personagens de cinema, trabalhou a sedução para conquistar possíveis meninas, mexeu as sobrancelhas, fez bicos e piscadelas, divertiu-se nos vários papeis assumidos no instante em que ficou atrás daquelas lentes escuras.
Ao longo das várias performances assumidas, voltou seu pensamento para às vezes em que, sentado no topo do morro observava, incansavelmente, pessoas usando aquele acessório para trabalhar, passear, tirar foto, proteger dos raios solares, esconder algum problema visual, ou simplesmente, enaltecer a beleza. Ficava extasiado com a sua multifuncionalidade.
O dia continuava cinzento, sem brilho. Apenas um ínfimo detalhe, para aqueles que não enxergam além. Aqueles que não são, clandestinamente, felizes. Os óculos eram antigos, bem antigos, estavam numa capinha mofada e com alguns riscos graúdos em uma das lentes, mas que importância tinha? Ele, agora ,também possuía óculos escuros. Ele, agora, também podia ver o mundo num tom mais escuro, erguer a cabeça com toda sua pompa de menino, empinar sua pipa o mais alto que fosse e com todos os raios solares, sem se incomodar. Estava livre e havia feito um pacto de irmandade com o sol.  Era o rei das lentes escuras. E o sorriso? Não cabia em seus lábios.