Após
passear pelas redondezas do bairro, observou que um de seus vizinhos estava se desfazendo
de alguns pertences antigos. Sempre atento a possíveis descartes, pois muitos
de seus brinquedos eram montados a partir deles, aproximou-se do vizinho e o cumprimentou
no intuito de apresentar disponibilidade para alguma doação. No meio de algumas
breves considerações e ajuda, veio o prêmio da loteria, o seu maior presente. Foi dominado por uma felicidade clandestina que poucos conhecem.
O
dia estava nublado, cinzento, quase escuro. Mas, para ele aquele clima não iria
abalar sua felicidade. O mundo externo não lhe oferecia às luzes necessárias,
mas internamente havia mais luz própria que o próprio sol. Estava se sentindo
bem com aquelas armações quadradas, antigas, com manchas de mofo, empenadas e
totalmente fora de moda. Mas, seu. Só seu. Um presente de valor inestimável. Um prêmio lotérico. Há tempos não se sentia tão bonito, charmoso. Digno com
aquelas lentes escuras, pouco arranhadas, mas brilhantes. Projetou-se de várias
formas. Fez-se de executivo, personagens de cinema, trabalhou a sedução para
conquistar possíveis meninas, mexeu as sobrancelhas, fez bicos e piscadelas,
divertiu-se nos vários papeis assumidos no instante em que ficou atrás daquelas
lentes escuras.
Ao
longo das várias performances assumidas, voltou seu pensamento para às vezes em
que, sentado no topo do morro observava, incansavelmente, pessoas usando aquele
acessório para trabalhar, passear, tirar foto, proteger dos raios solares,
esconder algum problema visual, ou simplesmente, enaltecer a beleza. Ficava
extasiado com a sua multifuncionalidade.
O
dia continuava cinzento, sem brilho. Apenas um ínfimo detalhe, para aqueles que
não enxergam além. Aqueles que não são, clandestinamente, felizes. Os óculos eram
antigos, bem antigos, estavam numa capinha mofada e com alguns riscos graúdos
em uma das lentes, mas que importância tinha? Ele, agora ,também possuía óculos
escuros. Ele, agora, também podia ver o mundo num tom mais escuro, erguer a
cabeça com toda sua pompa de menino, empinar sua pipa o mais alto que fosse e
com todos os raios solares, sem se incomodar. Estava livre e havia feito um
pacto de irmandade com o sol. Era o rei das lentes escuras. E o sorriso?
Não cabia em seus lábios.
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